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Três grandes serranos
Bruno Terra Dias
(Membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais. Cadeira n° 34. Patrono: Cristiano Benedito Otoni)

I - Introdução

A história dos personagens marcantes de um povo não começa pelo nascimento, mas remonta a acontecimentos inscritos na genealogia familiar e no caráter daqueles com quem conviveram e compartilharam expectativas. Cogitar os grandes vultos que o Serro deu a Minas Gerais e ao Brasil demanda, ainda que brevemente, justificar a índole dos que daquele solo brotaram. O que, afinal, fez com que a antiga Vila do Príncipe se tornasse celeiro de personalidades e, de certa forma, guardiã de valores e aspirações que ainda hoje refulgem no cenário político nacional?

Toda a vasta região, a partir do Rio das Velhas, passando pelos Vales do Rio Doce, Jequitinhonha e São Francisco, estendendo-se de Conceição do Mato Dentro a Montes Claros, compôs o território do Município do Serro. Essa cidade lendária, cujo nome se pronuncia com reverência mítica, é também conhecida como “Mater criadora do Norte de Minas”. Não é sem razão seu elevado prestígio, tantos os nomes de filhos seus que ornam galerias de citação obrigatória nas mais diversas artes e ciências.

Em 1702, a bandeira de Antônio Soares Ferreira, que havia partido de Sabard, em 1700, chegou a local penhascoso e frigidíssimo, onde encontrou ouro. No local, conhecido pelos indígenas como Ivituruí (que significa “terras de cerração fria”), foi dado o nome de Minas de Santo Antônio do Bom Retiro do Serro Frio. Com o valioso metal, surgiram casas, igrejas e ruas, travessas e becos, ganhando forma e sendo a povoação reconhecida como arraial, para onde foram garimpeiros, religiosos, mercadores, senhores e seus escravos, soldados, agentes do fisco, etc.

Em 1714, por ato do governador Dom Braz Baltazar da Silveira, foi o arraial elevado à condição de vila (instalação em 6 de abril), ganhando o nome oficial de Vila do Príncipe do Serro Frio. Sob tal condição, ganhou a comuna Senado da Câmara, e foram criados os cargos de Ouvidor-Geral, Provedor, Intendente de Fundição, Juiz de Fora, Inquiridor do Crime, Alcaide Municipal e outros exigidos pelo serviço público.

Aos 17 de fevereiro de 1720, foi criada a comarca e, em 6 de março de 1838, a vila foi elevada à condição de cidade, abreviando o nome para Serro. O desenvolvimento, com calçamento de ruas, reconstrução da matriz, edificação de casas com melhor acabamento, se fazia notar.

A preservação das características originais, com apoios aos fundos das construções para suportar declives, tais como as descritas por Saint-Hilaire, em 1817, fez com que a Cidade do Serro fosse declarada, em 1938, pioneiramente, Patrimônio Nacional.

O amor à instrução, à história e à cultura fizeram do Serro uma autêntica reserva moral da Nação. Foi a primeira cidade a criar, no Brasil, escolas primárias, a partir de recursos próprios. No município, tiveram vez diversos jornais, dentre os quais se destaca o Sentinela do Serro, de onde Teófilo Otoni (seu fundador) disparava sua firme retórica republicana, incomodando o regime monárquico e sendo cocausador da abdicação de D. Pedro I, em 1831.

Ao Serro acorreram duas famílias de origem italiana: Ottoni e Pignataro (aportuguesado para Pinheiro). Em comum, os ideais libertários e republicanos, a fuga ancestral de uma Itália em momentos políticos difíceis e a determinação de construir, no Serro, uma história digna dos antepassados. Em muito breves considerações, eis um retrato da cidade de origem dos irmãos Teófilo e Cristiano Benedito Otoni e do presidente João Pinheiro da Silva.

II - Os irmãos Otoni

De família modesta e pobre, os irmãos Teófilo e Cristiano Benedito Otoni eram, respectivamente, o primeiro e o terceiro dos onze filhos de Jorge Benedito Otoni e Rosália de Souza Maia. Suas vidas, exemplares na história do Brasil, devem ser contadas a partir de 1723, antecedendo em quase um século seus nascimentos, ocorridos em 27 de novembro de 1807 e 21 de maio de 1811. O histórico familiar, com recuo de tantas décadas, torna compreensível a forja de homens ímpares, a produção de duas personalidades marcantes do cenário politico nacional.

Descendente de família nobre italiana, mas marcado por um pensamento político liberal que o levou ao exílio em Portugal, residindo por quinze anos em Lisboa, o genovês se naturalizou português, em 1723, sendo seu nome Manoel Antão Otoni. Maravilhado pelo que ouvia da colônia, mudou-se para São Paulo, onde constituiu família; o pensamento liberal seguiu entre seus filhos e netos.

Em data não precisa, por meados dos setecentos, chega ao Serro Frio, vocacionado a trabalhar na Casa Real de Fundição, como fundidor, Manoel Vieira Otoni, neto de Manoel Antão. O fundidor se casou com Ana Felizarda do Prado Leme, por sua vez descendente de famílias de nobres, navegadores e bandeirantes paulistas. O casal teve vasta prole, educada com as ideias liberais avoengas, pelo lado paterno, e com a coragem e determinação da ancestralidade materna. Dentre os filhos, destacaram-se José Eloy Otoni e Jorge Benedito Otoni. O primeiro, poeta romântico e liberal, bradava pela independência que libertaria os brasileiros da condição de escravos de Portugal (embora D. João VI o tenha corrigido publicamente, afirmando que os nascidos no Brasil eram, em verdade, apenas vassalos; a reprimenda real soou bem pior do que se houvesse silenciado).

Jorge Benedito Otoni, bisneto de Manoel Antão Otoni, casado com Rosália de Souza Maia, era arrecadador de dízimos, pessoa acatada no Serro e em Diamantina, de inteligência reconhecida e fácil conversação. Suas ideias liberais naturalmente o encaminharam para a política, tornando-se Vereador da Vila do Príncipe, em 1813; honroso representante da mesma Vila perante a Junta Eleitoral na Província de Minas Gerais, reunida em Ouro Preto, em 1821; membro da Assembleia Legislativa, em que transformada a Junta Eleitoral; proponente da reabilitação da pena de infâmia imposta a Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes.

A ancestralidade marcou fortemente as trajetórias de Teófilo e Cristiano Benedito Otoni, que buscaram, no Rio de Janeiro, limites além do que sugeriam as montanhas, servindo ambos a Academia da Marinha. Foram acolhidos pelo tio José Eloy, então Oficial da Secretaria da mesma academia. Graduaram-se em guarda-marinha como primeiros alunos das respectivas turmas.

Teófilo Benedito Otoni

Mais velho dos irmãos, Teófilo retornou ao Serro, onde, aos 23 anos, fundou o Sentinela do Serro. No jornal, escreveu artigos que perturbaram a monarquia. Adepto das ideias de Thomas Jefferson, advogou as liberdades, a democracia, a abolição e o republicanismo contra a tirania e a monarquia. Deu seguimento aos ideais que animaram os Inconfidentes e o seu próprio pai. Sua formação política o levou a eleger-se deputado da Assembleia Legislativa da Província de Minas Gerais (primeira legislatura), em 1835, sendo eleito, em 1838, deputado ao Parlamento Nacional (quarta legislatura), em que obteve excepcional destaque.

Reeleito em 1842, viu Teófilo a maioria liberal no parlamento ser desfeita por ato de força do Imperador, que dissolveu a Câmara. Esse foi o estopim da Revolução Liberal de 1842. Derrotado em Santa Luzia, o grande serrano teve seus ideais reconhecidos pela posteridade. Preso, a ferros, foi conduzido a pé, de Santa Luzia para Ouro Preto, sendo levado a julgamento, pelo Tribunal do Júri, em 19 de setembro. Tamanha era sua imponência, que o tribunal se levantou ante sua presença e assim permaneceu mesmo diante das advertências do juiz presidente. O réu fez sua própria defesa, confessando fidelidade ao lema do jornal Sentinela do Serro, que declamou: “São direitos inalienáveis, imprescritíveis e sagrados a liberdade, a segurança, a propriedade e a resistência à opressão”. A absolvição unânime foi o veredicto.

Novamente eleito deputado, em 1848, viu, mais uma vez, a Câmara ser dissolvida, encerrando-se o período de governo liberal, que durou desde 1845. Passou, então, à iniciativa privada, propondo-se a desbravar a região do Mucuri.

Criou a Companhia do Mucuri, grande empreendimento de desbravamento e povoação, um dos maiores do século XIX. Pessoas das mais diversas nacionalidades e origens fizeram estradas, povoaram a região e se adaptaram, culminando com a criação de Filadélfia, na melhor expressão que se poderia esperar de um admirador de Thomas Jefferson. A comuna, pela Lei estadual nº 2.486/1878, recebeu o nome que ainda hoje ostenta, em homenagem póstuma ao grande homem falecido em 17 de outubro de 1869, de Teófilo Otoni.

Tornando à atividade política, foi eleito cinco vezes ao Senado por Minas Gerais. Ao passo das eleições, as preterições pelo Imperador. Eleito novamente deputado por sua província, em 1861, foi reeleito em 1863, também a senador, exercendo o cargo até sua morte, ocorrida em 1869.

Em 1960, os restos mortais daquele que não se dobrou às conveniências e manteve coerência com o credo republicano foram removidos do Rio de Janeiro para a cidade de Teófilo Otoni, onde se encontram até hoje.

Cristiano Benedito Otoni

Buscando custear a própria vida, sem dependência paterna, tentou a cadeira de geometria na Academia da Marinha, formulando requerimento ao imperador, D. Pedro I. Seu pedido foi negado, pois os Otoni eram tidos como portadores de aspirações contrárias à Coroa, segundo o Ministro da Marinha, Marques de Paranaguá, que pessoalmente interferiu para que o imperador não acatasse o pleito. Certamente, as atividades do pai, Jorge Benedito Otoni, pela constitucionalização e sua pregação liberal, eram de conhecimento real; a insolência de José Eloy Otoni a D. João VI, em 1821, no Teatro São João, no Rio de Janeiro, ainda ecoava; e havia também de considerar as atividades do irmão mais velho, Teófilo, igualmente primeiro aluno da respectiva turma da Academia da Marinha, liberal, de espírito independente e altivo, frequentador de clubes republicanos e revolucionários, com atuação desassombrada na política, sendo fundador do jornal Sentinela do Serro, de índole republicana e democrática.

Frustrada a tentativa de recursos para cursar Direito, continuou Cristiano Otoni a carreira da Marinha, matriculando-se no curso de Engenharia da Academia Militar, graduando-se em 1836. No mesmo período, foi eleito Deputado Provincial do Rio de Janeiro (1834, aos 23 anos) e obteve a cátedra de Matemática, da Academia da Marinha, por concurso público (aos 24 anos). Casou-se, em 1837, com Bárbara Maia. Essa fase da vida foi profícua, produzindo diversos livros sobre aritmética, álgebra, geometria e trigonometria, que foram amplamente adotados pelas escolas no Brasil. Em 1846, publicou Teoria das Máquinas a Vapor. Na mesma época, foi Oficial de Gabinete do Ministro da Marinha. Em 1848, foi eleito Deputado-Geral por Minas Gerais.

Sua vida sofreu grande transformação em 1855, quando deixou a vida acadêmica para tornar-se dirigente de uma empresa ferroviária, atividade que começava a se instalar no país, na qual iria se notabilizar. A Estrada de Ferro D. Pedro II teve por primeiro presidente o grande liberal republicano, Patrono da Cadeira nº 34 (nomeado presidente, o Visconde do Rio Bonito, que havia presidido a comissão organizadora da companhia, recusou a honraria, assumindo o vice-presidente, Cristiano Benedito Otoni). O imperador, mesmo cônscio do pensamento politico de todos os Otoni, reconhecia em Cristiano as qualidades imprescindíveis para liderar um empreendimento que significava a opção modernizadora dos transportes e economia para as províncias de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Cercou-se de corpo profissional especializado, para as questões técnicas, e se empenhou profundamente nas tarefas de administração, tal como pontificou na obra O futuro das estradas de ferro no Brasil, que publicou em 1859.

Sua administração exemplar viabilizou a transposição ferroviária da Serra do Mar, um desafio de engenharia para o qual não havia mão de obra especializada no país. Pessoalmente, comandou os trabalhos, indo a campo tantas vezes, apreciando estudos dos engenheiros contratados nos Estados Unidos. Arrostou forte resistência, no Gabinete, na Câmara, no Senado e na Imprensa, pois ninguém acreditava na capacidade técnica de superação do desafio de engenharia representado pela Serra do Mar. Apoiado pelo imperador, realizou tarefa que nenhum outro teria coragem cívica de assumir na mesma época. Por dez anos, administrou a companhia. Com múltiplos talentos, projetou o futuro ferroviário do país, fixou normas e procedimentos para o resultado econômico do empreendimento, venceu embates políticos de toda ordem, com ministros e parlamentares.

Sua atividade política, após as experiências parlamentares de 1834 (Deputado Provincial do Rio de Janeiro) e 1848 (Deputado-Geral pelo Partido Liberal da Província de Minas Gerais), estendeu-se em mandatos como Deputado-Geral pela província de Minas Gerais, Conselheiro de S. M., o Imperador D. Pedro II, e Senador pelas províncias do Espírito Santo e Minas Gerais. Recusou convites para ser Ministro da Agricultura e da Marinha.

Faleceu em 17 de maio de 1896, a poucos dias de completar 85 anos, no exercício de mandato como Senador. É reconhecido como “Pai das Estradas de Ferro do Brasil”.

 

III - João Pinheiro da Silva

Filho de Giuseppe Pignataro, italiano da Toscana, e de Carolina Augusta de Morais Pinto, casados em 1854, João Pinheiro da Silva, nascido no Serro, em 16 de dezembro de 1860, era o terceiro dos três filhos do casal (seus irmãos eram José, nascido em 1856, que seguiu vida religiosa, e João, nascido em 1859, que viveu poucos meses). Giuseppe se refugiou no Brasil, por motivos ainda não bem esclarecidos, vindo de uma Itália até então não unificada. Em terras brasileiras, aportuguesou seu nome, passando a Pinheiro e acrescentando “da Silva”. A hipótese mais aceita para a emigração era a convulsão social da Itália na luta unificadora.

Muito novo, em 1870, o grande serrano viu falecer o pai, de febre amarela, em viagem ao Rio de Janeiro.

Cursou o Seminário Menor de Mariana, cursou parcialmente Engenharia, na Escola de Minas, e se bacharelou em Direito (1887), sendo entusiasta das ideias republicanas. Foi jornalista e advogado em Ouro Preto. Muito novo, antes de completar 30 anos, teve rápida passagem pelo governo republicano estadual (em janeiro de 1890, foi nomeado Secretário de Estado e Primeiro Vice-Governador de Minas Gerais; exerceu a governadoria, de 11 de fevereiro a 12 de abril de 1890) e pelo Congresso Constituinte (eleito deputado em 20 de julho de 1890).

Casou-se com Helena de Barros, em 25 de janeiro de 1890, com quem teve 12 filhos, sendo 4 homens e 8 mulheres. Formou linhagem invulgar de sua descendência, havendo diversos homens públicos proeminentes.

Decepcionado com os rumos da República, passou a dedicar-se à vida de empresário em Caeté, fundando empresa cerâmica (que lhe rendeu o apelido pejorativo de “oleiro de Caeté”). Adotou sistema de transporte moderno para a época: vagão sobre trilhos, para levar mercadorias até Sabará, em viagem de 4 horas, a uma velocidade média de 5 km/h.

Tornando à vida política, no governo do Presidente Francisco Sales, coordenou o primeiro Congresso Agrícola, em 1903. O entusiasmo pelo retorno à atividade o levou a candidatar-se e eleger-se Senador, em fevereiro de 1905. Em março de 1906, foi eleito para o governo de Minas Gerais, com planos de alcançar a presidência da República. Uma administração séria, realizadora e eficiente o credenciava ao mais alto posto executivo do país, mas a morte o colheu em 25 de outubro de 1908, poucos dias antes de completar 48 anos de idade.

“Só a virtude é o fundamento da República”, frase que concentra a essência do testemunho de fé hospedado na biografia de João Pinheiro, serviu de título ao discurso pronunciado por Pedro Aleixo na Câmara dos Deputados, por ocasião do centenário de nascimento do homem serrano que, em breves anos de vida modesta e devota, consagrou, no cenário político, o modelo de vida autenticamente republicano. Não fazendo da pobreza material desculpa para infortúnios, laborou duramente para bacharelar-se em Direito, constituindo escritório em Ouro Preto e pregando as benesses do ideal que o levou, em 15 de novembro de 1888, a fundar o Clube Republicano, em antecipação ao que, um ano mais tarde, ocorreria. Sua obra não se conta pela assunção de cargos, por pedras fundamentais ou placas de inauguração, mas pelo bronze eterno inscrito na dedicação à causa do bem comum, chegando ao máximo quando, eleito, assumiu a Presidência do Estado de Minas Gerais, jamais pretendendo ou buscando personalizar os atributos de força da administração pública, sempre ciente da transitoriedade dos homens, sejam líderes ou liderados.

Sua grandeza ética e política protegeu o patrimônio público de ambições por inversões patrimonialistas; sua consciência e determinação, o escrúpulo no trato da coisa pública, não deixaram margem a que dúvidas fossem suscitadas quanto aos princípios de sua administração como Presidente do Estado de Minas Gerais. Somente políticos de tal envergadura, sempre escassos entre os povos, de que Minas Gerais é referência nacional, tanto por seu passado como no presente e apontando para o futuro da Nação, fará na nossa terra com que as promessas da República e da Federação se materializem em liberdade e felicidade para todos.

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